domingo, outubro 08, 2006

Cesária Évora e uma dança robotizada

Depois de um ano afastado do mundo dos vivos, Ayatollah (adoro escrever na terceira pessoa, já que me devolve alguma da espiritualidade perdida) teve o prazer de receber, no seu duplex semi-destruído de Beirute, a diva da África quasi-Sahariana Cesária Évora.
Sem grandes cerimónias, Cesária invade o meu espaço sem se aperceber de todo o material logístico e armamento utilizado na luta contra os malfeitores do Ocidente.
Deixando cair as suas abundantes nádegas sobre o meu sofá centenário, a diva começa assim:

Batem leve, levemente
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

As opções eram infinitas. Por esses dias, a guerra preenchia todos os espaços da minha memória. Pensar era então um exercício doloroso que me forçava a sair da rotina diária do belicismo e do derramamento de sangue. Questionava o significado desta visita, perguntando-me se esta mulher esperaria uma resposta ou se apenas procurava repreender o meu modo de vida último... ou as duas coisas.
Recordando-me de um dos seus hits, lanço uma palavra à sorte: saudade.
Numa dança robotizada, Cesária percorre toda a sala, cantando este tema vezes sem conta. Eu mantenho-me imóvel, analisando toda a situação com incredulidade. A diva apodera-se das granadas, fazendo-as cair pela janela, semeando destruição nas ruas já desfeitas de Beirute. Encontramo-nos num dos bairros mais radicais da cidade, e a esta hora vivia-se felizmente um recolher obrigatório. A esta altura já o seu vestido caboverdiano jazia no chão da minha sala, e apenas uma sensual lingerie preservava a honra da artista.
Decido ir à cozinha preparar uma infusão de verbena. Pensei que uma bebida quente poderia devolvê-la à sensatez.
Enquanto aqueço a àgua, ouço atrás de mim uma porta que se fecha. Sei que a diva partiu para não mais voltar. Troco a verbena pela menta, e questiono o porquê da guerra. Apetece-me dançar. Saio de casa, e procuro um bar com mulheres bonitas.

1 comentário:

Anónimo disse...

tanto tempo sem ver as tuas escritas.
Espero que nas tuas bandas esteja tudo bem depois da passaem da estrondosa DIVA.