Beirut, 23.46 pm.
A noite continua calma, e dou a última passa do meu Portugês Suave. Opto por escrever pela noite dentro, quando a tranquilidade e a solidão flutuam lado a lado. A caneta Mont-Blanc reluz sob a ténue luz das velas, pedindo-me para que a faça bailar sobre o maço de folhas que se distribuem desorganizadamente pelo solo. Estou no bairro árabe da cidade, onde os vestígios da guerra são demasiadamente óbvios. Contei 34 vestígios de balas nas paredes do meu quarto; um quarto maçadoramente humilde, mas com muitas histórias ocultas, imagino eu...
Truz, Truz Truz...
Pergunto quem é. Não gosto de visitas a esta hora da noite, pois comprometem todo o meu trabalho. Imagino ser Rashid, o moço de 13 anos que faz questão de me visitar todos os dias para trazer-me notícias; ou simplesmente para isso, visitar-me.
Rashid: Mestre, sou o Rashid. Tenho sensacionais notícias!
Ayatollah: OK Rashid, abro-te já a porta.
R: OK Mestre. Estou em pulgas Senhor.
A: Lava-te Rashid.
R: Era brincadeira Senhor. É uma expressão da minha terra, isso do estar em pulgas... é como se está quando não se pode conter uma notícia importante!
A: Ah, OK Rashid. Já sabes que nós os Seres Iluminados só usamos linguagem erudita. Entra então fiel súbdito. Que me trazes tu?
R: Esta foto vinha na revista do "Inatel International". Retrata a nova sensação noctívaga do cruzeiro "Inatel on Tour 2005", o novo sex symbol para maiores de 60 e vacinadas.
A: Mas... mas... mas este jovem é o Pedro!
R: Sim Mestre... imagino que lhe deva custar... sei que lhe estendeu a mão aos 13 anos, quando o Pedro se fazia passar de pastor alemão abandonado pelas ruas do Porto, tentando ser levado para casa de reformadas e refugiar-se nas suas casas como prestador de serviços sociais.
A: Sim Rashid. Não olhes mais para essa foto. Só te vai desviar do Caminho. Tu, um ser puro e exemplar, não aspires tornar-te um pedaço de miséria humana como o Pedro. E agora, vai para casa, cuidar da tua família e descansar. Busca no sossego o Caminho para a Eterna Luz Divina.
R: Sim Mestre. Seguirei o seu sábio conselho. Até amanhã. Obrigado pelas moedas.
A: Obrigado a ti, pela foto. Vou tentar ajudar esta alma pecadora, tentar trazê-la de volta ao Rio da Fé.
Rashid saiu no seu passo de criança, não de volta a casa, mas para um Cybercafé, para jogar no Bet&Win.
A tranquilidade já ia longe, e não pude regressar à escrita. Optei por pendurar a foto na parede do quarto, e meditar sobre ela pela noite dentro, em busca de explicações. Temo pelas minhas avós.
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